Existe resistência legítima?

Autor: Nelson Monteiro


Segundo a ‘doutrina’ de Dom Lefebvre e seus seguidores existiria uma desobediência legítima contra o Magistério vigente, contra seus decretos e leis. Diz-se basear na história da Igreja e em alguns teólogos para tanto. Dom Mayer chega a dizer que a obediência causaria “um grave prejuízo às almas e à Igreja (“La nouvelle Messe”, p. 277) Dom Lefebvre vai além, defendeu que é Satanás que quer que obedeçamos o Magistério para a destruição da fé (cf. O golpe de mestre de satanás, 13 de outubro de 1974) Já daqui vemos que o Magistério que antes deveria ser considerado regra próxima da fé, infalível em seu conjunto, reconhecido como sendo o próprio Cristo operando na Igreja, é invertido, e passa a estar nas mãos de Satanás. Esdrúxula teoria, para não dizer herética. Os tradicionalistas pensam que é crime comparar Dom Lefebvre com Martinho Lutero, mas poderá ser de outro modo? Lutero apelidava o Concílio de Constança de “sinagoga de demônios” (Janssen. P. II. 299). “Os Concílios não passam de brinquedos de crianças ou de doidos". (para o Núncio Pedro Vergério, 1535) Só dois exemplos de muitíssimas outras citações.

Leiamos as palavras de Dom Lefebvre sobre sua teoria:

Alguns insistem sobre o caráter da assistência divina ao Papa e que, por ela, ele não pode se equivocar; logo, tem que obedecer; por conseguinte, nós não temos o direito de discutir o que ele fez ou o que ele disse. Esta é uma obediência cega que não é conforme a prudência (...) Há dois princípios de solução: afirmar que o papa disse heresias e por conseguinte não é papa; é um intruso, não devemos obedecer-lhe. Ou questionar em que medida as promessas de Cristo de assistir ao Papa deixam a ele a possibilidade de realizar certos atos ou de dizer certas coisas que, por sua própria lógica, fazem aos fiéis perder a fé. Em que medida são compatíveis as promessas e a destruição da fé por negligência, omissão ou atos equívocos. (5 de julho de 1982)

Estamos obrigados a seguir o erro porque ele nos vem pela via da autoridade? Assim como não devemos seguir a padres indignos que exigem que façamos coisas indignas, igualmente tampouco devemos obedecer aos que exigem que reneguemos nossa fé e abandonemos toda a Tradição. Isto está fora de discussão.” (29 de junho de 1982)

Uns dizem: os atos de Roma são tão maus que o Papa não pode ser Papa legítimo; é um intruso. Portanto, não há Papa. Outros afirmam: o Papa não pode firmar decretos destruidores da fé; portanto, estes atos são aceitáveis, se lhes deve submissão. A Fraternidade não aceita nem uma nem outra destas duas soluções. Apoiada na história da Igreja (?) e na doutrina dos teólogos (?) ela pensa que o Papa pode favorecer a ruína da Igreja escolhendo e deixando agir maus colaboradores, firmando decretos que não comprometem sua infalibilidade mas que causam um dano considerável à Igreja (...)” (setembro de 1982)

Nosso sublinhado deixa nítido o pensamento de rebelião de Dom Lefebvre. Mas devemos conceder, contudo, que nessa teoria se esconde alguma verdade. Se é verdade que não há desobediência legítima ao Magistério, é também vero que há desobediência legítima ao Papa. Os Papas, por serem vigários de Jesus Cristo, não são impecáveis, pois não deixaram de ser homens. É por isso que na Missa sempre rezamos pela pessoa do Papa. Sendo assim, é possível que o Papa aja ou ordene alguma coisa que vá contra os bons costumes. Tal possibilidade, no entanto, não atinge o Magistério nem as leis da Igreja, pois estas são protegidas por Deus. As manchas pessoais do Papa não atingem de modo algum a santidade e a autoridade da Sé Apostólica.

Tivemos na história papas de temperamento forte, pecadores e agressivos, não há razão para escondê-los.

Tais atitudes podem ser muito prejudiciais à Igreja. A nossa Doutora Santa Catarina de Sena sobre o Papa diz: “Nele está a nossa vida. E também a nossa morte, quando não se preocupa em defender as ovelhas que perecem.” (Oração I. A Missão do Verbo, 14 de agosto de 1376, extr. As orações, Santa Catarina de Sena, Ed. Paulus, 2006) Obviamente as formas de proceder do Papa, mesmo a tirania de sua parte, faz um prejuízo enorme para à Igreja (a história o diz), que o deveria ver como modelo. Neste caso haveria, sim, uma desobediência legítima ao Papa, pelo abuso de poder e não pelo poder. Os fiéis se defenderiam de maneiras diversas, podendo não obedecê-lo. Mas aqui não se inclui o Magistério, nunca os erros dos Papas e ordenações ruins puderam se infiltrar na doutrina e nas leis da Santa Igreja. Isto é impossível! Como diz Mons. Cauly: “Contudo, nenhum daqueles reputados maus lavrou decreto contrário à pureza da doutrina, quer dogmática, quer moral da Igreja.

Nenhum deles ensinou, nem tão pouco instituiu alguma coisa em vista de legitimar suas desordens, como fizeram, por exemplo, os chefes do protestantismo, abolindo o celibato, os votos monásticos, o laço indissolúvel do matrimônio. Não será isto mais uma prova visível da assistência divina?” (Curso de Instrução Religiosa, Tomo IV, Apologética Cristã, pág. 472, Nihil Obstat, 1930)

Dom José Ignacio Moreno no ensina: “Contraindo-me agora exclusivamente ao presente estado das coisas, digo aos católicos que temem de boa fé as empresas dos Papas – A injustiça e o erro não podem fazer mansão, nem lançar raízes na Santa Sé, sem que bambaleie esta pedra, sobre a qual toda a Igreja está fundada; e como então poderia ela permanecer firme, segundo as promessas de seu Divino Autor? Se, pois, dais crédito à sua palavra, donde vos vem a cegueira, essa criminosa desconfiança, que vos faz supor abandonado de Deus no exercício de seu ministério aquele, a quem o mesmo Deus pôs por ministro, que ensinasse e regesse a sua Igreja?” (Ensaio sobre a Supremacia do Papa, especialmente a respeito da instituição dos bispos, ano 1843, p. 96)

Esta autoridade, que se refunde no mesmo episcopado, que abrange a mais que o dos bispos, consiste em dois pontos gerais – em reger os negócios da Igreja universal – e em suprir os defeitos, e corrigir os excessos dos Bispos seus irmãos. Estas coisas, como temos visto, constam da escritura e tradição. Dessas duas fontes dimana toda a disciplina que hoje nos rege, e desafio a que se nos prove o contrário. Bem pode suceder, que os autores ultramontanos tenham atribuído ao Papa alguma faculdade, que não esteja na esfera daquelas duas grandes atribuições; mas será isso uma opinião, e não uma disciplina da Igreja. Pode também suceder, que, no exercício das funções particulares, que emanam dessas duas atribuições gerais, tenha havido algum abuso, ou surpreza; mas o abuso, ou surpreza, não extingue o legítimo poder, nem vicia a disciplina, que sempre supõe e requer seu reto uso.” (Ibid. p. 53)

Ou seja, o abuso papal nunca recairia em erro sobre o dogma e moral da Igreja, nunca o Magistério seria passível e parte desses ultrajes. Dizer o contrário é se condenar. O Concílio de Constança condenou os erros de João Wicleff do seguinte sentido:

“Se o Papa é um réprobo e mau e, por conseguinte, membro do diabo, não tem potestade sobre os fiéis (...)” (DS 588)

“Depois de Urbano VI, não tem de ser recebido ninguém por Papa, mas há de se viver, ao modo dos gregos, sob leis próprias” (DS 589)

É a partir desta lógica que se deve interpretar os escritos de São Roberto Belarmino e de Francisco Suárez tão levantado pelos tradicionalistas. Todos os teólogos que eles aludem apenas dizem sobre uma resistência acidental, no sentido exposto. Também ninguém nega que o Papa possa ser repreendido por seus erros morais, como foi S. Pedro (Gálatas 2, 11), mas a situação de querer atacar e julgar se defender do Magistério é completamente diferente e estranho na história da Igreja.

Analisemos os citados.

São Roberto Belarmino:


Essa frase é tirada de seu contexto. São Roberto Belarmino refutava argumentos dos quais se defendia que o Papa estaria sujeito ao poder secular ou a um concílio ecumênico (conciliarismo). O argumento do qual refutava era o que segue:

“Argumento 7. A qualquer pessoa, é permitido matar o papa se ela for injustamente atacada por ele. Logo, a fortiori é permitido aos reis ou a um concílio depor o papa se ele perturba o estado, ou se ele tenta matar almas com o mau exemplo dele.”

São Roberto Belarmino respondia:

“Eu respondo negando a segunda parte do argumento. Pois, para resistir a um agressor e defender a si próprio, nenhuma autoridade é necessária, nem é necessário que quem é agredido seja o juiz e o superior do agressor. Autoridade é exigida, porém, para julgar e punir.”

E só daí que dirá:

“Assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo, pois estes atos são próprios a um superior.” (De Romano Pontifice, II, 29.)

Vemos que a resistência se refere se o Papa agride as almas com seu comportamento ou se estivesse perturbando a ordem civil, até mesmo se tentasse destruir a Igreja. Só aí que haveria desobediência legítima, não contra o Magistério, mas aos atos e vontades do Papa. Não se fala em leis ou documentos papais. Ou seja, São Roberto Belarmino responde no sentido de um Papa que perturbasse a ordem pública ou que “mata almas pelo mau exemplo dele”. Deve-se saber diferenciar também ordens más de leis más. É da primeira que se fala não da segunda. Por exemplo, tentar vender benefícios eclesiásticos ou fazer uma guerra injusta.


Aqui é um caso diferente. Quem copiava a citação não entendeu, primeiramente, que não há palavra “Papa” nesse trecho. É claro que se referia a ele, mas o que quero mostrar é que os tradicionalistas saem divulgando as coisas sem ao menos verificar. Quem copiou certamente não notou que os tradutores puseram “o Papa” entre colchetes para indicar que isto não consta no original, apenas querendo dizer que era a ele que se referia. A expressão “baixar uma ordem” criou-se do nada. “Baixar uma ordem” pareceria muito com um decreto doutrinal ou lei promulgada. No original lemos: “Si enim aliquid statuat contra bonos mores, non erit illi parendum.” Ou seja, se ele ordenar algo que vá contra os bons costumes o fiel teria o direito de resisti-lo.

A tradução no inglês também não se faz no sentido da figura: “gives an order contrary to right customs”. Em outras palavras: dar uma ordem contrária aos bons costumes. É claro que o fiel não deve obedecer ao Papa se ele o manda pecar. Exemplos: mandar alguém matar os judeus injustamente; mandar alguém vender indulgências; ordenar reis saquearem povoados para lhe dar 30% do ganho, etc. Mas nada aqui se refere ao Magistério nem se fala de lei da Igreja. Na sua outra obra, Defensio Fidei Catholicae, Suárez dá exemplos de ordens más, entre elas: fazer algo mal para ruína da Igreja, comandar injustiças, guerra injusta, profanar ou destruir coisas sagradas (cf. Defensio Fidei Catholicae, lib. IV, cap. 6, 17 - 18) Quanto às heresias é que o Papa poderia ser julgado pela Igreja, um Concílio o poderia o depor, já que por Deus já estava julgado (cf. Defensio Fidei Catholicae, lib. IV, cap. 7, 5) Suárez diferencia bem as heresias dos “outros crimes extremamente prejudiciais para a Igreja” (cf. Defensio Fidei Catholicae, lib. IV, cap. 6, 14).

Contra esses comandos maus, também os teólogos Caietano e Vitória concordam com os ditos acima.

Enfim, há uma grave confusão entre os tradicionalistas e não poderia ser diferente já que não se submetem ao Papa.
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Fonte:  https://continuitas.blogspot.com/2014/01/existe-resistencia-legitima.html

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