A bula Quo Primum não eternizou a missa tridentina

 

A BULA QUO PRIMUM TEMPORE

Não é raro de se ver tradicionalistas defenderem uma eternidade da Missa Tridentina com base na bula Quo Primum Tempore. As opiniões divergem, alguns dizem que o missal foi canonizado com uma autoridade paralela à canonização de um santo, alguns chegam a dizer que São Pio V teria tornado ele um Missal Ex-Cathedra, um rito irreformável que sempre foi celebrando na história da igreja; outros dizem que o Papa só poderia mudar o rito em coisas pequenas, e que dessem maior sensação de solenidade. Muitos destes mesmos dizem que a liturgia não pode ser considerada uma questão de disciplina, mas uma questão de fé.

A Bula diz, entre outras coisas, que:

«Da mesma forma, declaramos e ordenamos que ninguém seja obrigado ou coagido a alterar este Missal, e que este presente documento não pode ser revogado ou modificado, mas permanece sempre válido e mantém sua plena vigência» (São Pio V - Bula Quo Primum Tempore)

LEGÍTIMA INTERPRETAÇÃO

A linguagem jurídica de perpetuidade era muito comum entre os Papas do passado, quando eles tinham intenção de reforçar seu decreto para a Igreja, sem que obrigue seu sucessor no pontificado a manter a mesma disciplina.

Alguém poderia objetar que São Pio V estivesse falando num momento muito mais solene, especial e que acertasse o mais auto grau de autoridade; mas a interpretação que acabei de apresentar se torna evidente pelas demais atitudes do Papa, que usou a mesma autoridade no breviário:

«declaramos que este breviário, em nenhum momento, pode ser alterado no todo ou em parte, que nada pode ser acrescentado ou tirado dele, e que todos aqueles que são obrigados por lei ou por costume a recitar ou cantar as Horas canônicas, segundo o uso e rito da Igreja Romana, ficam agora expressamente obrigados, perpetuamente, a recitar e entoar as horas, tanto de dia como de noite, segundo a prescrição e a forma deste breviário romano, e que nenhum daqueles a quem este dever é formalmente imposto, pode satisfazer [este dever] senão apenas nesta forma.» (São Pio V - Bula Quod a Nobis)

Se fosse-mos julgar o texto em sua literalidade, teríamos que dizer que São Pio X errou gravemente contra a ordem de São Pio V, ao modificar o breviário de forma que recebeu críticas como as seguintes:

Anton Baumstark: «Até 1911 não havia nada na liturgia cristã de tão absoluta universalidade como esta prática no ofício matinal, e sem dúvida sua universalidade foi herdada da Sinagoga [...] à observância universal de uma prática litúrgica que foi seguida pelo próprio Divino Redentor durante sua vida na terra»

Pio Parsch: «É bastante surpreendente que, apesar do caráter conservador da Igreja, Pio X teve que aceitar essa grande mudança que vai contra uma prática de 1500 anos»

Robert Taft, SJ: «(…) foi um afastamento chocante da tradição cristã quase universal

William Bonniwell, OP: «Na revisão de Pio X, o venerável ofício da Igreja Romana foi gravemente mutilado

Estas citações acima podem ser encontradas na obra “The Organic Development of the Liturgy” de d’Alcuin Reid (páginas 74-76)

Outra vez em que encontramos algum Papa usando de perpetuidade é na supressão dos jesuítas:

«Agora, percebemos que a referida Companhia de Jesus não podia mais produzir os abundantes frutos e benefícios [...] mas, pelo contrário, que se ela existisse, seria quase impossível que a Igreja pudesse alcançar a verdadeira e permanente paz. Guiados por tais considerações [...] nós, após um exame maduro, em virtude da autoridade apostólica e por conhecimento certo, suprimimos e extinguimos a referida sociedade [...] Nós declaramos, portanto, que está perpetuamente desfeita e dissolvida» (Papa Clemente XIV - Encíclica Dominus ac Redemptor Noster)

E o Papa Pio VII reestabeleceu a Companhia de Jesus em 1814.

Outro exemplo em que isso acontece é o caso da supressão dos ritos chineses:

«Nós condenamos e detestamos a suas práticas como supersticiosas ... nós revogamos, anulamos, revogamos e desejamos que sejam privados de toda a força e efeito, toda e cada uma dessas permissões, e dizemos e anunciamos que elas devem ser consideradas para sempre anuladas, nulas, inválidas e sem qualquer força ou poder» (Papa Bento XIV - Ex quo singulari)

Seria essa uma decisão dogmática e irreformável? É claro que não. Em 1939, Sob Pio XII, a Sagrada Congregação de Propaganda reverteu a decisão de Clemente XI sobre os ritos chineses — e de Bento XIV na "perpétua" Ex quo singulari.

Por fim, a Congregação para o culto divino reforça essa posição: "Do ponto de vista canônico, deve-se dizer que quando um Papa escreve ‘perpetuo concedimus’ [concedemos a perpetuidade], deve-se sempre entender ‘até que seja ordenado de outro modo’. É próprio da autoridade soberana do Romano Pontífice não ser limitado nas leis meramente eclesiásticas, muito menos pelas disposições dos seus Predecessores. Ele é ligado somente à imutabilidade das leis divina e natural, além da própria constituição da Igreja". (Congregação do Culto Divino, de 11 de junho de 1999) [1]

LITURGIA COMO MATÉRIA DE DISCIPLINA

Por mais que alguns tentem negar, é evidente que a liturgia da igreja é matéria de disciplina, mas não toda, pois existem coisas na Missa que são de caráter substâncial, como o uso de pão de trigo, vinho de uva, jogar água ao cálice...

Pio XII diz: "A sagrada liturgia, com efeito, consta de elementos humanos e de elementos divinos. Esses, tendo sido instituídos pelo divino Redentor, não podem, evidentemente, ser mudados pelos homens; aqueles, ao contrário, podem sofrer várias modificações, aprovadas pela hierarquia sagrada, assistida do Espírito Santo, segundo as exigências dos tempos, das coisas e das almas. Disso se origina a estupenda variedade dos ritos orientais e ocidentais..." (encíclica Mediator Dei, 45) [2]

Agora, se torna uma questão de discernimento sério entender o que é e o que não é substâncial na administração dos sacramentos, e para nos mantermos com reta consciência sobre o assunto, devemos compreender o direito que o Sumo Pontífice tem sobre a liturgia e a indefectibilidade na sua legítima aprovação.

O Papa tem o direito de mudar a liturgia:

«Por isso, somente o sumo pontífice tem o direito de reconhecer e estabelecer quaisquer praxes do culto, de introduzir e aprovar novos ritos, e mudar aqueles que julgar que devem ser mudados» (Pio XII - Encíclica Mediator Dei, art.52)

Os ritos aprovados pela Igreja são indefectíveis:

«O poder legislativo da Igreja tem por matéria tanto aquilo que se refere à fé e aos costumes quanto aquilo que se refere à disciplina. No que se refere à fé e aos costumes, soma-se à obrigação da lei eclesiástica a obrigação de direito divino; em matéria disciplinar, toda obrigação é de direito eclesiástico. Contudo, ao exercício do supremo poder legislativo está sempre ligada a infalibilidade, na medida em que a Igreja é assistida por Deus para que ela nunca possa instituir uma disciplina que seria de qualquer maneira oposta às regras da fé e à santidade evangélica.» (Cardeal Billot - De Ecclesia Christi, Roma, 1927, tomo I, p. 477, Tese XII)

«[À proposição que conclui] como se a Igreja, que é conduzida pelo Espírito de Deus, pudesse estabelecer uma disciplina não somente inútil e pesada demais para que a liberdade cristã a suporte, mas também perigosa, nociva e induzindo à superstição e ao materialismo: [É uma proposição] falsa, temerária, escandalosa, perniciosa, ofensiva aos piedosos ouvidos, injuriosa para a Igreja e para o Espírito de Deus por quem ela é conduzida, no mínimo errônea.» (Pio VI - Constituição Auctorem Fidei, art.78)

O MISSAL MUDOU DEPOIS DE TRENTO E ANTES DO VATICANO II

Também não podemos deixar de considerar que foram feitas mudanças no missal ainda antes do Concílio Vaticano II, como por exemplo o Missal de 1604 que:

Suprimiu a primeira antifonia; 

Dividiu a oração Summe Sacerdos de Santo Ambrósio em sessões para vários dias da semana; 

Incluiu nas rubricas o uso de sino, incenso e tochas;

Suprimiu as palavras “todos os pecados” após o confiteor;

Suprimiu o verso “Dirigatur Domine...” que era dito pelo celebrante enquanto ele incensar o altar antes de dizer o intróito e novamente quando o altar é incensado durante o Ofertório nas missas solenes;

Suprimiu a menção do nome do Rei no Cânon;

As palavras “Todas as vezes que fizerdes estas coisas...” (Haec quotiescumque) deixaram de ser ditas durante a elevação do cálice e passaram a ser ditas após a elevação;

Suprimiu a rúbrica de tríplice benção no final das celebrações solenes e a reservou somente aos prelados;

SÃO PAULO VI INVOCA PARA O PRÓPRIO MISSAL A MESMA AUTORIDADE DE SÃO PIO V

«A adoção do novo "Ordo Missae" certamente não fica a critério dos sacerdotes ou dos fiéis. [...] O Novo Ordo foi promulgado para substituir o antigo, após madura deliberação, a pedido do Concílio Vaticano II. Da mesma forma, nosso santo Predecessor Pio V tornou obrigatório o Missal reformado sob sua autoridade, seguindo o Concílio de Trento.

Exigimos a mesma disponibilidade, com a mesma autoridade suprema que vem de Cristo Jesus» (São Paulo VI - Consistório de 24 de maio de 1976)

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Fonte: https://apostoladoaquinate.blogspot.com/2022/04/a-bula-quo-primum-tempore-eternizou.html

[1] Acréscimo nosso.

[2] Acréscimo nosso.

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