Papa Francisco sobre os hereges progressistas e tradicionalistas

Na história da Igreja, sempre houve grupos que acabaram na heresia, por causa dessa tentação do orgulho que os fez sentir superiores ao Corpo de Cristo. Nas últimas décadas, depois do Concílio Vaticano II (1962-1965), tivemos ideologias revolucionárias, seguidas por outras restauracionistas. De qualquer forma, o que as caracteriza é a rigidez. A rigidez é sinal de que o mau espírito está escondendo alguma coisa. E o que está escondido pode não ser revelado por muito tempo, até que surja algum escândalo, Vimos como tantos grupos da Igreja, em anos recentes– movimentos quase sempre caracterizados por sua rigidez e seu autoritarismo–, acabam caindo nisso. Seus líderes e membros se apresentavam como restauradores da doutrina da Igreja, mas o que mais tarde viemos a saber da vida de cada um deles nos diz o contrário. Por trás de cada grupo que procura impor sua ideologia à Igreja, achamos a mesma rigidez. Mais cedo ou mais tarde, haverá alguma revelação chocante envolvendo sexo, dinheiro e controle psicológico. 

O que se esconde é uma tentativa de se apegar a alguma coisa que temos medo de perder, algo que alimenta o ego: o poder, a influência, a liberdade, a segurança, o status, o dinheiro, a propriedade, ou alguma combinação dessas coisas. O medo de perder essa "coisa adquirida", como define Santo Inácio, faz com que eu me agarre a ela com mais força, de tal maneira que, se me pedem que a deixe para me unir a uma missão, o espírito de suspeita e de suposições começa a me dar razões para me fechar, ocultando meus apegos e justificando--os muitas vezes com as falhas dos outros. Pouco a pouco, à medida que abraço essas "razões" que justificam meu isolamento, meu coração endurece e meu compromisso com tais razões aumenta, transformando-as em uma ideologia.

Assim, entre católicos de consciência isolada, nunca há escassez de razões para criticar a Igreja, os bispos, ou o Papa: ou somos retrógrados ou nos rendemos à modernidade; não somos o que devíamos ser ou o que, supostamente, já fomos. Desse modo, justificam seu isolamento e separação da caminhada do Povo de Deus. Em vez de se lançarem à grande tarefa de evangelizar nosso mundo, em comunhão com o Corpo, ficam aninhados em seu grupo de puristas, guardiões da verdade. Para essas pessoas, apartadas pela consciência isolada, nunca faltam razões para ficar na sacada, enquanto a vida real se desenrola embaixo. 

Dessa forma se dissemina a semente da divisão. Uma abertura caridosa aos outros é substituída por um apego à suposta superioridade das próprias ideias. A unidade é minada pela batalha entre diferentes partidos que se esforçam por impor a hegemonia de suas ideias. Sob a bandeira da restauração ou da reforma, as pessoas fazem longos discursos e escrevem artigos sem fim, oferecendo esclarecimentos doutrinais, ou manifestos que refletem apenas a obsessão de pequenos grupos. Entretanto, o povo congregado por Deus avança, nas pegadas de Jesus, sem deixar de ver as falhas da Igreja, mas feliz por fazer parte de Seu Corpo, confessando seus pecados e implorando a misericórdia. O Povo de Deus reconhece as próprias falhas e pecados e é capaz de pedir perdão, porque se reconhece um povo que sentiu os efeitos da misericórdia. 

Essas falhas e limitações são conhecidas. Algumas pessoas têm experiências dolorosas que tornam compreensível sua desconfiança da Igreja. O que me preocupa aqui é a condição espiritual expressa na arrogância de crer que a Igreja necessita ser salva de si mesma, e que trata a Igreja como se fosse uma corporação na qual os sócios podem exigir uma mudança de gerência. Isso é uma versão do mundanismo espiritual. Os que afirmam haver muita "confusão" na Igreja, e que somente este ou aquele grupo de puristas ou tradicionalistas são confiáveis, semeiam a divisão do Corpo. Isso também é mundanismo espiritual. O mesmo acontece com aqueles que dizem que, enquanto a Igreja não ordenar mulheres, como prova de seu compromisso com a igualdade de gênero, a paróquia local ou o bispo não poderão contar com a sua cooperação. Aparentemente, são razões fundamentadas, mas disfarçam o espírito da consciência isolada, que se nega a agir como discípulo de Cristo, dentro da Sua Igreja. 

Jesus não fundou a Igreja como uma cidadela de puros nem como um desfile constante de heróis e santos, embora, graças a Deus, eles existam em grande número. É algo muito mais dinâmico: uma escola de conversão, um lugar de combate espiritual e de discernimento, onde há abundantes graças, mas também pecados e tentações. 

(Papa Francisco. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 78- 81.)

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