Hermenêutica e Concílio Vaticano II

 

Vejamos o que diz Carlos Alberto em seu Curious Cat (site de pergunta e resposta):

PERGUNTA DE UM ANÔNIMO:
De que adianta entender o concílio sob uma perspectiva escolástica, tradicional e tomista, posto que os pontífices (todos) e o colégio episcopal (a maioria) nunca o entenderam de tal modo, e nem pretenderam entender?
E de que adianta entender o concílio sob esta perspectiva escolástica, tradicional e tomista, posto que as doutrinas conciliares nunca repercutiram de tal modo no ensinamento dos papas (repito: todos) e da maioria do colégio episcopal?
O clero ainda ensina a doutrina católica? Os católicos ainda creem na doutrina católica, nos dogmas e nos artigos de fé?

RESPOSTA DE CARLOS ALBERTO:
Muita calma: o Concílio acenou para três espécies de correntes filosófico-teológicas que podem ter repercussões hermenêuticas; entre as três está, especialmente, a filosofia escolástica que tem a Santo Tomás como seu grande ápice. Então o Concílio reconhece, desde já, a possibilidade hermenêutica de seus documentos pela “chave” e pelo escopo doutrinal de Santo Tomás e da filosofia escolástica.

Então, não, ninguém está tirando coelhos da cartola ao interpretar (como fizeram os grandes escolásticos pós-CVII) o Concílio pelas lentes do escolasticismo e da teologia tomista. Além do mais, é manifesto que, em muitos momentos, o CVII se vale de uma linguagem expressamente “escolástica”: v. g., a liberdade religiosa como “imunidade de coação” que é uma clara influência da noção de “libertate coactionis” dos filósofos escolásticos (especialmente jesuítas).

Aliás, existem trabalhos de “mapeamento” das influências escolásticas (especialmente do Aquinate que é expressamente citado em vários documentos) no Concílio Vaticano II.

Assim, repito: interpretar o CVII pela chave hermenêutica escolástica, principalmente tomista, é algo que o Concílio e os que redigiram os seus documentos (a Comissão Teológica) acenaram e incentivaram. Não é uma loucura: loucura seria pensar que a Igreja lançaria mão de sua maior força e tradição teológica como possibilidade hermenêutica principal de seus documentos.

Sobre os papas posteriores: não é bem verdade que eles nunca entenderam de tal modo (nem pretenderam). Existem trabalhos de teólogos sérios que buscaram demonstrar a influência de Santo Tomás e de outros escolásticos nos pontificados de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI; sobre a questão do ecumenismo, p. ex., o jesuíta Sullivan assinala como o pensamento de JPII é quase uma repetição explícita da esquematologia revisada da infidelidade (especialmente dos séculos XVI, XVII e XVIII). Creio que sua visão esteja distorcida: recomendo que dê uma olhada no trabalho de escolásticos como Royo Marín e Anderregen sobre Santo Tomás como intérprete do Concílio. O Anderregen (mestre de gente “fraca” como Martín Echavarría) tem um artigo apenas sobre isso.

Não se espante: a maior parte dos grandes escolásticos do século XX (até mesmo os amados pelos tradicionalistas) eram favoráveis ao Concílio.

RÉPLICA DO ANÔNIMO:
Você não entendeu bem aonde quero chegar. Não digo que é tirar coelhos da cartola, tampouco que é loucura. A pergunta é: de que adianta entender o concílio sob a perspectiva da magna filosofia e da magna teologia tomista, maior força e tradição teológica teológica da Igreja, se não é assim que os papas e a maioria colégio episcopal entenderam (e nem pretenderam, nem pretendem entender)?

"não é bem verdade que eles nunca entenderam de tal modo (nem pretenderam)"... como não? Você há de concordar: a atitude dos papas (e da maioria do colégio episcopal) quanto à "clave hermenêutica" do concílio é fundamentalmente diferente da atitude de um Andereggen. É natural que restasse alguma influência de Santo Tomás nos pontificados dos três papas que você citou, pela mesma formação filosófica e teológica (que ainda continha o tomismo em relevo) do clero daquele tempo. Mas, repito, a atitude dos papas quanto à hermenêutica não é fundamentalmente tomista ou escolástica, nem chega perto da atitude de um Andereggen, ou de um Carlos Alberto mesmo. Na verdade, o que aconteceu foi o arrefecimento do tomismo, conquanto os papas conservassem alguma influência (que, repito, era até natural) tomista. Na verdade, o tomismo arrefeceu-se absolutamente desde o concílio, a ponto de boa parte do clero não conhecer o beabá da doutrina de Santo Tomás, e, mais do que isso, propagandear que o tomismo é "ultrapassado", "demasiado matemático", etc.

Você diz que o concílio acenou para três espécies de correntes que *podem* ter repercussões hermenêuticas, e que entre elas está o tomismo, mas o tomismo não deveria ser a perspectiva hermenêutica fundamental, que julgaria as outras duas? E por qual razão o tomismo foi jogado ao relento nos nossos seminários? Não é reflexo da própria atitude dos papas e da maioria do colégio episcopal, que mais ocultam o tomismo que qualquer outra coisa?

Conheço o trabalho de Andereggen e me parece admirável e de boníssima fé, mas me parece também que é como um filho tentando defender um pai que não quer nem nunca quis ser defendido e interpretado para o bem. Por isso pergunto: de que adianta a atitude se esta nunca (nem de longe) foi a atitude das maiores autoridades da Igreja desde o concílio, e se as autoridades nunca empreenderam grandes esforços para que esta fosse a atitude geral?

TRÉPLICA DE CARLOS ALBERTO:
Adianta na medida em que o Concílio pede e possibilita tal chave hermenêutica. Adianta na medida em que o Concílio dá indícios que quer ser entendido [também] com a técnica escolástica. Então porque não lê-lo assim? Acho que basta, não?

Mas vamos conceder o pior dos cenários para o escolástico: os papas e a maioria do colégio episcopal, de fato, não não pretenderam (apesar de estranhamente deixarem indícios de uma leitura escolástica) nem entenderam os documentos do Concílio com a hermenêutica escolástica (não necessariamente tomista): pois bem, independente do que entenderam e pretenderam (“finis operantis”) os papas e o colégio episcopal com os documentos, eles, enquanto tais, não necessariamente precisam ser entendidos assim (“finis operis”). Estamos no ambiente daquele famoso adágio escolástico: o fim do operante nem sempre coincide com o fim da obra.

No pior dos cenários a tarefa do escolástico permaneceria sendo, no fim, explicitar a finalidade intrínseca da “obra”; explicitar que ela, muitas vezes, não coincide com o “fim dos operantes”, etc. Assim ainda restaria uma chave hermenêutica remanescente.

Sobre os seus comentários restantes: concordo parcialmente com o diagnóstico. Só é preciso cuidado para não incorrer na falácia já apontada pelos medievais de “post hoc ergo propter hoc” (depois disso, logo, por causa disso, porque nem toda correlação coincidente perfaz algum vínculo causal, certo? Poderíamos facilmente sinalizar outras causas para decadência do tomismo que não o Concílio, creio eu. Especialmente por conta de alguns “tomismos” que surgiram no século XX.

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