Verdades indigestas para o neotradicionalismo

Autor: Carlos Alberto

“Assim, de acordo com a doutrina oficial da Igreja, os pagãos e infiéis também podem alcançar o Reino de Deus. Não porque os ritos ou crenças de suas falsas religiões tenham alguma eficácia santificadora, mas porque eles podem vir a pertencer em espírito sem o saberem à verdadeira Igreja de Cristo e receber, por sua influência, as graças da salvação.” — Royo Marín, O.P. (em ¿Se salvan todos?, p. 177).

1. É sentença teologicamente certa que um judeu, um muçulmano e até um protestante podem se salvar como infiéis negativos (dentro da esquematologia revisada da infidelidade ver: Sebalde de S. Cristóvão, Q. Moralium pars II, cap. I §3; Antônio Elia, Element. Theol. Praticae, Cap. III, nota I; José Arcanjo, Th. Moralis Institutiones pars I, Tract. De Virtibus Cap. IV; Edmundo Simonnet, Inst. Theologicae, Tract. VII, Disp. VI, art. II; Nicolas Mazzotta, Th. Moralis, Tract. II, Disp. I, Cap. II, §1; Patrício Sporer, Th. Moralis, in I. Praecept. Decal., Cap. III, assert. I; João de Lugo, De Virt. Fidei divinae, disp. XII, n. 50; Suárez, De Fide, Tract. I, Disp. XVII, sect. I, n. 6), com uma fé implícita sobre muitas verdades da ordem sobrenatural.

2.Não, esse parecer não viola o adágio “Extra Ecclesiam nulla salus”, porque a necessidade de preceito e de meio ainda é requerida para o recebimento da graça e da fé infusa. Seriam cristãos anônimos (na linguagem rahneriana), que fariam parte da Igreja “in voto” e não “in re”.

3.Enquanto tais religiões contêm porções da revelação sagrada, as duas verdades mínimas elencadas pelos tratadistas dos séculos XVII e XVIII como meios necessários para salvação [podem] ser cumpridas: a crença explícita que Deus existe e que é remunerador (se da ordem sobrenatural ou natural é matéria ainda disputada, como bem disse Ripalda na Disp. XVII, sect. XIII, n. 236 de seu “De ente supernaturali”). O que serve especialmente para religiões como o islã: o Alcorão vale-se expressamente das palavras árabes que indicam que o universo e a natureza foram criados por Alá. Algumas delas, como sinaliza o teólogo Abu Bakar (do departamento de teologia e filosofia islâmica da Universidade da Malásia), estão em verbos e substantivos árabes como “khalaq” e “khaliq”, “badi`”, “j`ala”, “fa`ala” e “fa`il”, “fatar”, “fatir” e “ansh`a” (ver C., 6:1–3; 32:4; 29:61; 31:25; 2:117; 6:101; 42:11; 6:98 e 67:23). A criação do universo pela onipotência de Deus, contudo, pode ser atestada por signos verbais e não verbais: os signos verbais estão contidos no Alcorão e nas tradições proféticas (3:112–114; 12:1 e 13:1–2); os sinais não verbais ou naturais, por outro lado, estão contidos no próprio universo e apontam, assim como as leis naturais, para o próprio Deus e seus atributos (41:53;45:3–5 e 51:20). Por consequência, é possível verificar algum conhecimento natural dEle a partir dos “sinais dados para os sensatos” (3:190; 2:164 e 21:32). Eis o fundamento insuspeito da teologia natural islâmica: a criação como espelho do Criador e de seus atributos invisíveis; um fundamento inquestionavelmente semelhante ao dado por São Paulo Apóstolo na Epístola aos Romanos: “Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar” (Romanos, 1, 20). O Alcorão tampouco rejeita, como vimos, essa ascensão até Deus através dos sinais da criação, o que é posição comum entre os teólogos muçulmanos e de antigos exegetas desse livro como Qadi Baydawi. Mas sequer precisamos elencar um Averróis (sobre este, reitero: jamais foi defensor da teoria posterior da “dupla verdade”), um Avicena ou um Al-Farabi; exemplos como o de al-Ash`ari, o fundador da escola Ash`arite de muçulmanos sunitas, já bastam. Nenhum leitor atento de sua “Al-Luma` fi-r-Radd”, em particular do primeiro capítulo, duvidará de sua extensa exposição dos argumentos para o “se é” de Deus. É possível elencar ainda autores de outras escolas de Kalam (de Maturidi, Mu’tazili), mas fiquemos por aqui. Lembrando que até mesmo na tradição de Kalam houve filósofos que criticaram doutrinas como o atomismo, o voluntarismo e até o ocasionalismo (implícito ou explícito em alguns teólogos árabes); autores como An-Nazzam são exemplos célebres da falta de unanimidade de certas vertentes do “escolasticismo” árabe sobre algumas questões. Para não esquecer: as suras corânicas 50:28 e 6:80 não atestam, nem de longe, a negação da teologia natural. São passagens que sequer tratam dos signos naturais que aqui comentamos. Aliás, ninguém poderá negar ao Alcorão o conhecimento de Deus pelo “lumen” natural do intelecto sem lidar com as passagens que aqui já expomos.

4.À vista disso, ademais, podemos dizer que essas religiões podem dispor ocasionalmente da graça e da cogitação côngrua (hipótese de Gabriel Vásquez em I-II, Disp. CLXXXIX, c. XVI, n. 144) em razão da “fé” cultivada sobre Deus uno.

5.Sim, a teologia da infidelidade pode servir como fundamento do ecumenismo religioso.

6.Sim, existem vários teólogos católicos (“modernistas” como Royo Marín e Francis Sullivan) que entendem o ecumenismo sob as diretrizes escolásticas.

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Fonte: https://scholasticorum.medium.com/verdades-de-dif%C3%ADcil-ingest%C3%A3o-para-o-tradicionalismo-moderno-d347158aec37

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